Joaquim se encontra com um velho amigo, Enrique, e começam a prosear sobre a vida, o trabalho, política. Conversa de aposentados. Conversa de grandes amigos. Enrique pede um chope, Joaquim aceita. Que venham também uns pasteizinhos. E o papo flui solto.
Lá pelas tantas Enrique, com ar de descrença no futuro, se queixa das dificuldades de fazer a máquina pública funcionar, da demora nas licitações, no Judiciário, em tudo o que diga respeito a órgãos públicos. O sistema é que não permite que as coisas funcionem, é a conclusão de Enrique.
Joaquim sorve o colarinho de mais um chope, limpa o bigodinho branco que contrasta com a pele escura, baixa um pouco os óculos dourados e encara o amigo com seriedade. Cê tá falando sério?
Enrique se encolhe. Conhece a força das opiniões de Joaquim, seu jeito firme e duro de falar quando tem certeza de estar com a razão. Toma mais um gole para disfarçar a garganta que secou com o olhar penetrante de Joaquim.
Enrique, começa a perorar Joaquim, você deve estar brincando, né? Você acha realmente que é o sistema, as leis, a cultura, da falta de pessoal, enfim, estas coisas etéreas que fazem do Brasil este país do jeitinho? Garanto que quando você quer comprar um carro você não admite demora do vendedor, não é mesmo? Garanto que quando você vai a uma loja e não encontra o produto que deveria estar ali você fica indignado e sai falando mal. Garanto mais, Enrique, garanto que em nenhum destes casos você diz que a culpa é do sistema, das leis, da cultura brasileira, você diz que a culpa é do vendedor, do dono da loja.
Enrique não sabe o que fazer. Um vizinho de mesa olha meio impressionado com o crescendo da voz. Enrique deixa Joaquim continuar. Sabe que o amigo vai continuar amigo por longos anos, e que os discursos duram alguns minutos e logo mudam de assunto.
Pois é, Enrique, mas quando se trata de serviços públicos, estes que eu e você prestamos durante tantos anos, porque fomos funcionários públicos, não se esqueça, juízes e promotores também são funcionários públicos, parece que o cidadão não tem direito de cobrar a mesma eficiência. Parece que a culpa é sempre do sistema.
Mas veja, Enrique, quantos exemplos temos hoje em dia de serviços públicos que funcionam com efetividade, basta as pessoas, isto mesmo, Enrique, basta as pessoas quererem, ninguém mais. Não precisa mudar leis para antecipar uma pauta de audiência de um caso importante para a sociedade; não precisa mudar o sistema para sair da sua cadeira e fazer umas fotografias e vídeos para provar um crime ambiental; não precisa contratar mais gente para inchar a máquina pública de tomadores de cafezinho se o chefe cobrar efetividade, resultado, proatividade. Enrique, não se engane meu amigo, a mudança não está nas leis, no sistema, na cultura, a mudança está nas pessoas.
Para mostrar empatia e tantar baixar o tom da voz de Joaquim, Enrique lembra daquele caso rumoroso que tramitou recentemente: Sim, Joaquim, verdade; enquanto você falava, lembrei do caso do mensalão. O presidente do STF pegou férias e foi estudar o processo sozinho, para não ser incomodado. Depois colocou em pauta o mais rápido possível. E para evitar que os colegas ministros ficassem pedindo vista do processo, o que atrasaria em anos o caso, encontrou uma solução simples: fez uma cópia do processo para cada um, dizendo que não poderia aceitar pedidos de vista porque todos já tinham o processo na mão.
Sim!, exclama Joaquim. O cara realmente fez a diferença. Mostrou que no Brasil até a Justiça pode andar quando se quer. Mostrou que, quando se tem vontade de fazer a coisa funcionar, a Justiça anda também para ricos e poderosos, mostrou como é feio um juiz ficar cheio de dedos com gente rica e falar alto com a chinelagem. Para mim o gran finale foi o presidente do STF ter expedido os mandados de prisão justamente num feriado, quando, no modelo de cultura de funcionalismo público reinante, ninguém trabalharia.
Enrique concorda com a cabeça. Joaquim está entusiasmado.
Enrique gostou do debate e agora quer mais, só mais um pouquinho. Provoca o amigo: mas Joaquim, por que será que o presidente do STF fez assim, será que tinha algum interesse por trás disso tudo?
Joaquim nem espera o amigo terminar de falar. Francamente, Enrique, muito me admira você levantar suspeitas contra ele. É uma pena, mas muita gente deve pensar assim. Um bom servidor público, dedicado, responsável, dinâmico, ousado é tão excepcional que na cabeça de quem se acostumou com o laxismo público brasileiro o homem deve ter um interesse obscuro por trás do que faz. Francamente, Enrique, você quando foi duro com aquele médico milionário que era nosso réu na década de oitenta tinha algum interesse? Não, claro que não. Eu sei que não. Você só queria fazer justiça, e fez. Cumpriu o seu dever. Mas cumprir o dever público, na nossa sociedade, parece ser feio, quando todos esperam um comportamento padrão de frouxidão, de "não vou me incomodar", de "não adianta de nada insistir".
Enrique termina o terceiro pastelzinho. Joaquim comeu só um, de tanto falar. Passam-se alguns segundos de silêncio. Enrique concorda com a cabeça, não tem como negar a evidência apresentada pelo velho amigo. Põe um fim no assunto. E a morte do John Kennedy, será que foi encomendada?