quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Furto de sinal de TV a cabo - resposta a artigo


Meu amigo de mais de década, Yannick Caubet, escreveu excelente artigo na última edição de O Judiciário (dezembro de 2009). Foi logo o primeiro texto que li. Além do interessante tema – tipicidade do furto de sinal de TV a cabo – a admiração que tenho pelo Yannick desde os tempos de antigamente me atiçou a curiosidade.

Animado com o assunto e com as lembranças das longas discussões que já travamos em centenas de churrascos de final de semana, não pude todavia deixar de fazer uma resposta. Uma resposta que, sei bem, não chegará à altura, mas que talvez contribua para o debate, ainda mais atual nos dias de hoje diante dos “gatos” de TV a cabo e de TV por satélite que são cada vez mais comuns. Conto nesta resposta com alguma prática dos tempos em que fui procurador federal na Anatel, com dados confirmados em uma consulta ao meu primo Leonardo, engenheiro eletricista.

Pois bem. Depois de citar a norma explicativa do §3º do art. 155 do Código Penal, meu amigo Yannick cita Cezar Bitencourt e defende que “certamente sinal de TV a cabo não é energia elétrica”.

A partir dessa premissa, informa que “o sinal de TV a cabo é coisa que sequer pode ser mensurada, como ocorre com a energia elétrica, cuja unidade de medida é o watt” e diz que “é impossível dimensionar o prejuízo decorrente da interceptação do sinal de TV a cabo”. Conclui, depois, que o furto de sinal prejudica os direitos autorais, mas não é furto de energia.

Não posso concordar com a premissa. Talvez uma de nossas conclusões chegue ao mesmo lugar, mas entendo que a premissa e as conclusões que derivam dela não estão corretas.

A televisão a cabo tem esse nome porque é transmitida por cabos coaxiais. Cabos coaxiais são cabos que transmitem eletricidade, embora de um jeito diferente. Os cabos de eletricidade que estamos acostumados são aqueles das tomadas das casas: dois fios de cobre que são separados no final. Os cabos coaxiais são, por outro lado, dois cabos num só, um deles por dentro, como se fosse a alma do cabo, e outro, numa espécie de malha, por fora.

Como qualquer energia, a elétrica é consumida (perdida) no curso dos cabos. Isso se deve à resistência elétrica que todo cabo apresenta. Um cabo muito longo, por exemplo, apresenta certa resistência que pode sim ser medida, e que exige, por exemplo, a instalação de amplificadores de potência em seu início para que no fim o nível de sinal seja suficiente para compensar as perdas ocorridas no percurso. Por isso, quando a operadora de TV a cabo instala um ponto num condomínio, por exemplo, e tem a previsão de uso por dez pessoas, dimensiona sua rede e instala o número de amplificadores de potência que serão necessários de acordo com a sua previsão. Se, no entanto, outras noventa pessoas instalam gatos, é evidente que a rede estará subdimensionada e, assim, o prejuízo ocorrerá.

Este prejuízo pode ocorrer de duas formas distintas. Em primeiro lugar, o próprio assinante que paga pelo serviço naquele prédio pode ter um sinal mais fraco do que aquele pelo qual está pagando. Chiados, interferências e toda sorte de problemas podem ser detectados.

Outro prejuízo pode ser sentido por aqueles que tomarem o sinal da TV a cabo em ponto mais adiantado da rede. Imagine que no número 100 da rua Lauro Linhares esteja instalado um transformador, programado para servir a quinhentos pontos de TV a cabo. O próximo transformador, digamos, estaria instalado no número 1000 da rua Lauro Linhares. Se, no meio deste caminho, houver ao invés de quinhentos pontos – o previsto pela operadora – mais quinhentos, no total de mil pontos, certamente o sinal chegará ao próximo transformador totalmente deteriorado, e assim por diante.

Além de ser uma espécie de energia, a energia do cabo de televisão é energia elétrica e, como tal, segue as mesmas leis da física que toda energia elétrica. Quanto mais resistência, mais perda de potência e maior a necessidade de amplificação. Quanto maior o número de derivações (pontos de consumo), menor a potência no ponto seguinte. Enfim, para ficar mais claro, podemos comparar com uma instalação de água. Lá no alto do Morro da Cruz a água chega com menos pressão porque tem mais resistência (inclinação, número de consumidores etc.). Se duplicarmos o número de consumidores sem avisar à Casan, certamente o último morador, que está pagando regularmente, não receberá a mesma água. A mesma regra serve aqui.

Para mim não há dúvida de que sim, se trata de furto, furto de energia, furto de energia elétrica, que causa dano, não só aos consumidores regulares, mas também à operadora que perde clientes. E este dano é perfeitamente mensurável, na mesma medida em que mede energia elétrica, em Watt-hora (Wh), ainda que as dimensões, por óbvio, sejam menores, já que a intensidade, ou seja, a potência do sinal, ficará menor com o furto.

Basta medir antes e depois para perceber a diferença. Como é uma energia elétrica bastante específica – traz em si codificado um sinal que gera uma programação artística – é óbvio que o preço não pode ser o mesmo da energia elétrica convencional, o que de fato seria absolutamente ínfimo. Não vejo, portanto, melhor padrão para mensurá-la do que o valor cobrado pela operadora. Assim, da mesma forma que mensuramos o furto de energia de um poste elétrico pelo valor cobrado pela Celesc, devemos mensurar o furto de energia elétrica de um cabo coaxial pelo valor cobrado pela Net ou quem quer o forneça.

Bom, no começo eu disse que não concordava com a premissa, mas que uma de minhas conclusões poderia ser aproximar à do mestre Yannick. E, sim, se aproxima, quando no final do bem escrito texto, meu amigo diz que “as empresas de TV a cabo muitas vezes sustentam práticas que acabam por lesar milhares de consumidores, sem que se cogite processar seus administradores na esfera criminal”.


Claro que o ponto foge da discussão, mas é realmente interessante, e aqui concordo com a crítica. Estivéssemos dentro de sistema jurídico realmente eficiente, não teríamos verdadeiros estelionatos sendo perpetrados contra a massa de consumidores sem qualquer espécie de punição. Na comarca em que trabalho, por exemplo, a operadora de telefonia fixa (Brasil Telecom) vem praticando outro estelionato ao incluir seguros não contratados nas faturas. Já consegui a liminar para retirarem a cobrança. Só que não cumprem. A multa já é milionária e não adianta de nada, já que só vai ser aplicada, apesar de eu discordar, somente depois do trânsito em julgado – o que vai levar talvez uns quinze anos... No Canadá já teria gente presa, mas isso é no Canadá...

Estou de acordo, Yannick! Deveríamos também criminalizar os diretores dessas empresas, autores reincidentes de incontáveis crimes contra as relações de consumo e contra o patrimônio dos consumidores. Mas punamos também quem comete os pequenos delitos, já que a “corrupção” começa com os pequenos atos, as pequenas faltas, que vão sendo aceitas socialmente como se tudo fosse normal, como diz o lema da campanha O que você tem a ver com a corrupção.