Encontram-se na cafeteria do fórum dois velhos amigos de infância. Brincavam juntos, jogavam bola. Na adolescência chegaram a namorar as gêmeas da escola (cada um uma, claro)! Estudaram no mesmo colégio de freiras, onde a formação era rígida. Dedicação aos estudos. Princípios morais em alta. Até para as aulas de religião e educação física estudavam.
Hoje, um é promotor e outro advogado. Ambos são muito bons no que fazem. Acordam cedo, trabalham muito, estão atentos às novas orientações da jurisprudência, da doutrina. Estudam, atualizam-se, estão sempre em busca do melhor para a defesa dos interesses de seus clientes e da sociedade.
Ambos acabaram de sair de uma audiência, cada um numa vara distinta. O promotor saiu de uma audiência naquele caso criminal importante. Réu rico, riquíssimo, flagrado em interceptações telefônicas com a mão na massa. Até recibo da corrupção tem. O advogado saiu de outra audiência também importante. Cliente honesto, levou um golpe e tenta reaver um pouco do que perdeu. Economia de anos.
Na preparação do caso, como sempre, cada um trabalhou da melhor forma possível. O advogado conversou longamente com seu cliente, conversou previamente com as testemunhas para saber se os fatos de que tinham conhecimento eram úteis ao processo ou não. Pediu que só falassem a verdade. Obteve documentos nas repartições públicas, contratou uma perícia, fez croquis, tirou fotografias, gravou tudo em vídeo. Propôs um acordo antes de entrar com a ação, mas a outra parte não quis; preferiu apostar na demora do Judiciário. No curso do processo, acompanhou os depoimentos de todas as testemunhas, mesmo em outras cidades, e quando não podia, porque ficava muito longe e caro para seu cliente, solicitou ajuda aos colegas advogados, preparou um dossiê, sugeriu perguntas mais importantes, pediu urgência no caso. Durante o processo foi necessário um recurso, foi até o tribunal, conversou com desembargadores, participou da sessão, apresentou memoriais. Batalhou pela causa de seu cliente, e como!
O promotor também.
Auxiliou o delegado nas investigações, foi ao local do crime, conversou com as testemunhas, pediu que falassem a verdade. Requisitou documentos, perícias, croquis. Conseguiu interceptação autorizada pela Justiça. Determinou a seus funcionários que fizessem fotografias, vídeos e, quando não havia funcionários, ele mesmo fez as fotografias. Apresentou um TAC por um dos ilícitos civis praticados, para tornar mais efetiva a devolução dos valores à sociedade. No curso do processo, foi combativo, recorreu, conversou com desembargadores, apresentou memoriais. Pediu aos colegas que acompanhassem os depoimentos das testemunhas noutras comarcas, mandou dossiê, pediu urgência, sugeriu perguntas às testemunhas, fez um resumo ao colega com o panorama do caso e das provas obtidas. Batalhou pela sociedade, pela promoção da justiça. E como!
No saguão do fórum, o promotor abraça o amigo de longa data, pergunta da família, dos filhos, da última viagem. O advogado também pergunta dos filhos do promotor, daquela paixão antiga pelo motociclismo, se ainda continua. Amenidades. Vai tudo bem. "E como foi a audiência? Caso importante?", pergunta o promotor.
- Sim, importante! - responde o advogado - Me deu o maior trabalhão, mas o caso é importante para o cliente. Questão complexa, difícil de provar, mas acho que consegui. Fui atrás das provas, consegui demonstrar tudo. No final até o advogado da parte contrária me elogiou pela perseverança e combatividade.
- Que bom! É legal ver o reconhecimento do nosso trabalho, né?
- Sim, sim! E você, saindo de audiência também?, pergunta o advogado.
- Sim - responde o promotor. Caso grave. Concussão, cobrança de propina, fizemos de tudo, interceptação telefônica autorizada pela justiça. Busca e apreensão, recibo da propina, tudo. Mas, sabe como é o processo criminal, quase uma dezena de habeas corpus e o caso caminhando lentamente. Fiz manifestações inclusive no tribunal, conversei com desembargadores, batalhamos bastante. A prova é bem clara, tudo demonstrado nas interceptações, pegamos o cara com a "mão na massa", não tem o que ele possa negar. Mas...
- Mas... o quê?, pergunta o advogado, curioso.
- Mas agora acabaram de vir com uma tese nova. Colocaram em suspeição todos os promotores e delegados que trabalharam no caso. Tudo seria um complô contra o réu. Chegam a dizer que armamos tudo para prendê-lo, pobre inocente. Disseram que o fato de meu colega ter ido ao tribunal conversar com os desembargadores mostra parcialidade, seria uma manobra da acusação! Imagina, um dos casos mais importantes da comarca! Disseram também que eu não podia ter colocado uma foto no processo, porque expus a vida íntima da pessoa... Acusaram até mesmo o delegado de ter consignado nos termos de depoimento dados falsos, porque a testemunha, agora com medo, negou tudo em juízo...
O advogado olha no relógio. Tem uma reunião no escritório em breve. Tenta consolar o velho amigo, bate no ombro, diz que é assim mesmo, mas que ele está fazendo um excelente trabalho e a sociedade reconhece. Manda abraço para toda a família e combinam de se encontrar em breve. Segue feliz. "Valeu a pena ter feito um bom trabalho", pensa o advogado ao caminhar a passos largos para seu escritório.
O promotor se despede e volta para seu gabinete. Pilhas enormes de processos se acumularam durante os últimos dias, na preparação para aquela audiência. Segue pensando nas acusações das partes e nos olhares desconfiados porque foi aguerrido e dedicado: "será que valeu e a pena ter feito um bom trabalho"?