sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Bons alunos e bons professores, ou uma questão de sorte

Charles e Fernando são advogados. Ambos estudaram juntos em colégio de padres. Ambos tiveram as mesmas oportunidades, à exceção de uma: Charles passou num vestibular para uma boa faculdade de direito; Fernando teve um pouco mais de preguiça nos estudos, preferiu continuar morando com os pais e acabou se matriculando numa faculdade mais perto de casa, em que o vestibular era apenas uma formalidade. A partir daí, a vida mudou.

Na faculdade, Charles comprava passe de ônibus e contava uma a uma das moedinhas de plástico, porque sabia que uma única a menos faria muita falta no final do mês. Trabalhava de tarde no fórum, voluntariamente. Frequentava as aulas à noite; pela manhã estudava. Na faculdade, só gente fera, dava vergonha tirar nota baixa.

Fernando ia à faculdade à noite com o carro que ganhou do pai. Mandou rebaixar e botar umas rodas grandes, dava vergonha andar com aquelas de aro catorze. Saía um pouco mais cedo das aulas, para tomar cerveja e jogar truco no barzinho. Encabeçou um movimento para afastar professor que cobrava nas provas o que não havia ensinado mastigadinho em sala de aula, "um absurdo, já que nós pagamos é para que ele ensine". Não estudava e passava. Como todos os demais.

Conversei com ambos tempos atrás. Perguntei sobre as lembranças da faculdade. Charles lembro do professor de direito ambiental. "Era jogo duro". Simpático apenas com os bons alunos, cara fechada na aula e na hora de avaliar. Deu aulas sobre princípios constitucionais, sobre leis federais, estaduais e municipais; jurisprudência de todos os tribunais. Ensinou os alunos a pesquisarem por conta própria. Cobrou nas provas princípios, mas também atos e portarias detalhadas, mesmo que não tivesse mencionado em sala de aula: era obrigação, segundo ele, complementar os estudos em casa. "Quando só faltava exigir que nós soubéssemos os códigos das atividades de uma portaria do Conselho de Meio Ambiente, ele exigiu; minha nota foi super baixa, mas aprendi a lição", lembra Charles.

Fernando abre um largo sorriso quando lembra da faculdade. "O melhor professor que tive era o  de direito tributário, gente fina". Dava aulas curtas e não cobrava chamada. Não tinha prática profissional nenhuma, mas "encantava a galera". Provas, só objetivas, de múltipla escolha. Discursivas davam muito trabalho. "Um dia fez uma prova em grupo e deu dez pra todo mundo, gente boa", lembra Fernando, com admiração.

Charles hoje ligou para Fernando. Foi promovido a sócio no maior escritório de advocacia da cidade; está radiante. Ganhou um caso importante porque descobriu um erro numa portaria do Conselho de Contribuintes. Fuçou em toda a legislação, inclusive comparando com normas internacionais, e conseguiu entender os detalhes intrincados do processo. Aplicou os princípios sim, mas não esqueceu que o direito é concreto. E foi elegante e educado nas petições, defendeu bem o cliente, fez justiça. Chegou a receber elogios na sentença.

Fernando, do outro lado da linha, atende a ligação do velho amigo. Depois de o parabenizar, exclama:

- Fico feliz por você, que teve sorte na vida.