quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Aristóteles na universidade...


— Aristóteles passou no vestibular!
— O filho da Maria Alice?
— Isso, da Maria Alice da padaria!
— Coitado, nunca vai ser ninguém na vida...

Essa infelizmente seria a conclusão mais acertada que alguém poderia tirar da assertiva do primeiro compadre.

Coitado do Aristóteles, tinha tudo para ser alguém na vida: um filósofo quem sabe; ou então ser médico; se não o tivessem obrigado a isso poderia virar botânico, ou biólogo; talvez continuasse a se dedicar à poesia; ou então mudasse o rumo e passasse a se concentrar em matemática, astronomia; imaginem ele veterinário, tinha tanto jeito para isso... poderia escrever sobre política ou ética, sobre veterinária e anatomia animal, imaginem...

Mas Aristóteles não vai ser nada disso. Prestou vestibular para aquilo que mais o agradava com seus dezessete anos e vai seguir a vida inteira fazendo a mesma coisa, mesmo que sua paciência se esgote, ou que ele mesmo esgote o assunto, ou que o assunto o esgote...

— Por que isso, compadre?

Porque ele foi obrigado a contrariar sua natureza inteligente e ilimitada. Forçaram-no a voltar seus olhos, os radiantes olhos que todo garoto de dezessete anos tem nessa idade quando descobre algo novo, para um só dos quadros do museu, para um só dos livros da biblioteca. O crime é tão violento quando o do malandro que mostra cinquenta pirulitos para uma criança e diz a ela que escolha apenas um sabor pelo resto da vida, mesmo sem conhecer esse sabor...

Mas, e se Aristóteles não tivesse vivido em nosso tempo? Digamos que tivesse nascido há muitos anos, talvez até mesmo antes de Cristo? O que teria acontecido a ele? Teria sido alguém na vida?

Provavelmente alguém com a curiosidade de Aristóteles, com sua perspicácia e determinação, teria feito o que bem quisesse na vida; teria aproveitado ao máximo todos os momentos fazendo aquilo que gostava e, como fazia o que gostava, cada vez mais o fazia melhor, e assim melhorava tudo até ser definitivamente o melhor entre os melhores no assunto.

Digamos que aos dezesseis anos gostasse de, por exemplo, medicina: escreveria aos vinte um tratado; e se fosse biologia: pesquisaria e catalogaria milhares de espécies; política ou ética: talvez escrevesse os textos mais importantes sobre o assunto; digamos, quem sabe, literatura: não chegaria a ser o melhor, mas sua contribuição para o mundo seria importante; e na astronomia: andaria a passos largos; e se se metesse a falar de lógica, matemática ou, podemos pensar em algo completamente distinto como... veterinária: deixaria, mesmo assim, suas marcas para o resto do mundo.

Mas, desafortunadamente, não foi esta a sina de Aristóteles. Viu-se obrigado a matricular-se numa faculdade qualquer e a esquecer tudo o que não dissesse respeito ao novo curso. Até a forma com que se expressava teve de mudar: fale de acordo com a gramática; não escreva fora dos padrões científicos; não dê idéias suas, apenas cite autores importantes, de preferência europeus; limite-se ao conteúdo da disciplina...

Aí, quando quis estudar anatomia e escrever um tratado, teve que ficar seis anos num curso maçante cheio de memorizações para dizerem que sabia do que falava; depois, precisou de mais três anos de mestrado e cinco de doutorado para escrever um tratado, que não foi aceito porque não estava nos padrões científicos...

Lá se foram quatorze anos. Resolveu estudar biologia, por gostar e sentir-se à vontade com os animais. Precisou de cinco anos para dizerem que, finalmente, poderia observar animais e estudá-los como pretendia.

Entediado, resolveu estudar a política das cidades próximas à sua e escrever um livro. Informou-se sobre como levar adiante esse trabalho e, novamente, lá se foi para a faculdade de ciências sociais estudar tudo o que não lhe interessava até chegar à ciência política. Mais cinco anos e pensou que agora estaria apto a escrever o que desejava.

Que nada, ainda não tinha conseguido o tal reconhecimento público e precisou escrever diversas outras pequenas obras, sobre assuntos que não lhe interessavam tanto para, somente então, tentar lançar o grande livro.

Agora, contudo, o trabalho passava do limite de páginas estabelecido pela banca de doutorado para aprovação... Com a astronomia, com a veterinária, com a matemática e a lógica, com a literatura e a poesia, com tudo foi a mesma história: não aceitavam o que escrevia porque não se encaixava nos padrões ou não tinha ainda o “perfil” para tratar do assunto.

Essa mania de dividir os assuntos, de compartimentalizar e de ver o mundo do modo mais específico possível acabou com Aristóteles, que agora não é mais ninguém. Aliás, Aristóteles agora se chama joão. Isso mesmo, joão assim com letra minúscula, de tão minúsculo que é o tal. Não vai escrever nada de útil ao mundo, não vai descobrir nada de novo nem desafiar regra alguma. Vai ser somente joão, o aluno de número 4.563 a ter passado pela faculdade...

É evidente que não podemos transportar a figura de Aristóteles para os dias de hoje, assim como não podemos exigir da educação a liberdade de tempos remotos. Mas, da mesma forma, não é possível manter o exagero de tornar os conteúdos das disciplinas herméticos em si mesmos, como se tem feito nas últimas décadas; não é possível colocar tantos obstáculos à criatividade e à curiosidade; não se pode acreditar na seriedade de um sistema que se propõe a estimular o estudo de temas cada vez mais específicos sem confrontá-los com o âmbito mais geral do conhecimento de forma multidisciplinar.

Permitamos ao menino do museu e da biblioteca todo o tempo do mundo para se deliciar o quanto quiser com seus quadros e livros; permitamos ao garoto a escolha de qualquer pirulito e, caso não goste do sabor do primeiro, que tente o segundo e o terceiro e o quarto, e assim por diante. Caminhemos para o futuro e não para o passado. Abramos, enfim, os olhos de joão e façamos dele um Aristóteles!