sábado, 9 de maio de 2009

Nossa língua genuflexa

* Augusto da Paz, Florianópolis, abril de 2009


- Vossa Excelência me respeite, canalha!
- Não; me respeite Vossa Excelência, seu quadrilheiro safado!

Senhores, decidam-se: ou se é bandido e safado ou se é excelência. Ambas as opções estão disponíveis, mas não andam juntas. A questão, acho eu, está na nossa língua subserviente e cabisbaixa, cortesã, repleta dos mais disparatados salamaleques. Prodígio de puxa-saquismo verbal, inventamos o “Excelentíssimo”, em si mesmo uma besteira: superlativo de superlativo. Dirigimos essa tola invencionice a quem se dispuser a tomar-nos o dinheiro para mandar em nós.

O idioma não é fenômeno de geração espontânea, mas processo cultural intrinsecamente político, que reflete uma postura interior e anterior, atitude existencial dos indivíduos que compõem um povo, uma nação. Imagine-se a extensão da gargalhada que isso há de provocar em qualquer extraterrestre que venha espiar-nos, olhudo: basta um cidadão, qualquer cidadão, ser nomeado reitor de uma universidade, qualquer universidade, para que ele, ato contínuo, no automático, vire “Magnífico”, “Vossa Magnificência”. Ora, mas uma macaquice dessas fica ridícula se aplicada até a um Faraó e assemelhados manipansos.

Houve, e há, homens de fato excelentes. Ocorrem-me os grandes gênios e os beneméritos da espécie. Beethoven e Mozart, por exemplo, e Matisse, fizeram um trabalho excelente, assim como o fizeram Dr. Sabin, com a vacina contra a pólio, e Alexander Fleming, com a penicilina. Por isso eu os chamaria, sem corar ou ter de rir por dentro, de “Excelência”. Já para poder dizer, mesmo para homens de tal quilate, “Excelentíssimo” ou “Vossa Magnificência”, eu primeiro precisaria começar a desvairar, a perder de vista a minha própria dignidade e compostura.

Nossa identidade não é um construído pessoal, mas uma atribuição que nos confere o Outro na relação. Acreditamos ser aquilo que nos informam que somos – no geral, lá atrás, na infância, mas adultos também são permeáveis a esse fenômeno. Não se pode culpar um marmanjo que, após anos de exposição a privilégios e vênias, passe a acreditar-se, de fato, superior à média das pessoas; logo, superior às leis e regras aplicáveis à também média das mesmas pessoas. Ele é Excelentíssimo, ora bolas! Foi-lhe informado e reiterado; era verdade, portanto. Bem, paguemos a conta sem reclamar: nós é que inventamos e/ou preservamos o idioma genuflexo. Mão no baleiro? Passagem internacional para o cunhado do namorado da prima-segunda? Bem feito: quem mandou mentir pro cara que ele era Ilustríssimo, Excelentíssimo e Digníssimo; Potestade? “A senhora”, “o senhor”, “Senhor Presidente”, “Senhora Ministra”, “Senhor Pedreiro”, “Senhor Cidadão”, já me parecem de bom tamanho; respeitoso o suficiente para qualquer ser humano.

Colegas falantes, Cidadãos: que tal levantarmos dos nossos joelhos para impor alguma decência à nossa língua e anexas formas de tratamento? Especificamente na relação com o poder, lembremos que excelente não é quem come o almoço: é quem o paga.