sexta-feira, 24 de julho de 2009

15 razões para o MP investigar


A questão da possibilidade de o Ministério Público desenvolver investigações criminais diretamente, mediante procedimento próprio, já foi objeto de muitos estudos e decisões judiciais, não tendo encontrado ainda definição pelo Supremo Tribunal Federal.


Alguns concluem pela necessidade de lei que contemple expressamente tal atribuição; outros chegam a sustentar que esta seria incompatível mesmo com a Constituição!(1).


Objetiva-se aqui apresentar, de maneira bastante resumida(2), razões de ordem jurídica e prática que permitem facilmente concluir que o MP pode e deve desenvolver investigações criminais.


1. Trata-se de atividade prevista em lei (cf. item 2) e compatível com a finalidade do Ministério Público (tanto que prevalece na Europa, cf. item 3) — portanto, amparada pelo art. 129, IX, da CF.


2. A Lei Complementar nº 75/93 (Estatuto do MPU) prevê, sem restringi-las ao âmbito civil, diversas atividades investigatórias do MP, no seu art. 8º, incisos I, II, IV, V, VI, VII, VIII e IX, destacando-se as atribuições de “realizar inspeções e diligências investigatórias”, “expedir notificações e intimações” e “requisitar informações, exames, perícias e documentos”; a Lei nº 8.069/90 (ECA) e a Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso) estabelecem textualmente competir ao MP instaurar sindicâncias para apurar ilícitos penais (art. 201, VII(3), e art. 74, VI); o art. 47 do CPP, o art. 356, § 2º, do Código Eleitoral e o art. 29 da Lei nº 7.492/96 são expressos ao atribuir ao MP atividades de investigação criminal direta.


3. A tendência dos ordenamentos modernos é atribuir ao Ministério Público atividade de investigação criminal (como ocorre na Europa continental — por exemplo, Alemanha, Itália, Portugal e França —, verificando-se o mesmo na América Latina — Chile, Bolívia, Venezuela, etc.).


4. Uma das recomendações do relatório da ONU sobre execuções sumárias no Brasil, apresentado recentemente pela advogada Asma Jahangir, inclui o seguinte trecho: “As unidades do Ministério Público deveriam dispor de um grupo de investigadores e ser encorajadas a realizar investigações independentes contra acusações de execuções sumárias. Obstáculos legais que impedem tais investigações independentes deveriam ser removidos em legislação futura” (item nº 82(4)).


5. O sistema do juizado de instrução revela inconvenientes, como o comprometimento da imparcialidade do juiz, que determinaram o seu desprestígio na Europa; já o sistema de investigação exclusivamente policial, arcaico e praticamente abandonado, causa inúmeros problemas de eficiência e celeridade em determinadas apurações.


6. A regra histórica do nosso direito, de que é exemplo o art. 4º do CPP, é a universalidade da investigação, que pode ser pública (Polícia, CPI, Judiciário(5), Ministério Público e autoridades militares), ou privada (auditorias internas em empresas, atuação de investigador particular — Lei nº 3.099/57 —, etc.), direta ou incidental (Receita Federal, Banco Central, INSS, COAF, corregedorias, etc.), não havendo sentido em se retirar justamente do titular privativo da ação penal pública a faculdade de colher elementos para formar sua convicção.


7. Em nenhuma passagem da CF se encontra dispositivo que autorize pensar em exclusividade na função de investigar — o art. 144 somente fala em exclusividade em relação à atividade de polícia judiciária da União, para excluir a atuação das outras polícias civis, além do que separa nitidamente a função de investigar infrações penais da de polícia judiciária, conforme fica claro da leitura dos §§ 1º, I e IV, e 4º do art. 144.


8. Qualquer titular de um direito de ação deve ter a faculdade de colher, por si, dentro de parâmetros legais e éticos, os elementos que sustentarão o seu pedido ao Judiciário, sob pena de ver coarctado o seu direito de ação — a prevalecer a tese negativa da função investigatória do MP, este órgão encontrar-se-á na insólita situação, dentro do nosso ordenamento, de único titular de ação sem a faculdade de colher as informações e documentos necessários para supedanear a sua pretensão, vendo-se eventualmente na contingência de promover ações e arquivamentos temerários.


9. O Ministério Público é órgão autônomo, cujos membros gozam de garantias constitucionais (inamovibilidade e vitaliciedade) e independência funcional (situação que não se repete na Polícia, até por ser órgão armado do Estado), o que implica maior probabilidade de desenvolvimento e resultado útil de determinadas investigações, como as que envolvem políticos influentes ou integrantes da Polícia, sobretudo os mais graduados.


10. O controle externo da atividade policial, função atribuída ao MP pelo art. 129, VII, da CF, é notoriamente inviável sem a possibilidade de investigação criminal independente, donde se invoca a teoria dos poderes implícitos.


11. A investigação é apenas um instrumento de formação de convicção, não um fim em si mesma, sendo a diferença entre investigações civis e penais apenas para fins metodológicos (inclusive quanto ao uso de determinados instrumentos, como a interceptação telefônica), não se podendo esquecer que provas extraídas de um inquérito civil podem embasar uma ação penal, da mesma forma que indícios colhidos em uma investigação criminal podem sustentar uma pretensão civil.


12. Se é correto, como ninguém parece discrepar, que a ação penal pode ser deflagrada sem inquérito policial (art. 46, § 1º, do CPP), que o MP pode promover inquéritos civis (art. 129, III, da CF) e que freqüentemente nestes inquéritos civis (por exemplo, nos que apuram improbidade administrativa) surgem indícios da autoria de ilícitos penais, suficientes para o ajuizamento de uma ação penal, soa incoerente e formalista ao extremo a idéia de negar ao MP a possibilidade de desenvolver investigações penais.


13. A alegação segundo a qual investigações promovidas pelo Ministério Público seriam parciais, porque visariam apenas a coligir provas tendentes a uma futura condenação, é de todo improcedente, porque: a) a prova da fase inquisitorial só serve para o recebimento da ação, devendo toda a prova (exceto a técnica) ser (re)produzida em juízo; b) não se espera do órgão investigador, seja ele Polícia ou Ministério Público, imparcialidade, atributo judicial, mas apenas impessoalidade; c) a Polícia está sempre em contato com o MP e é obrigada a atender suas requisições, sendo a mera idéia dessa pretensa eqüidistância um disparate; d) a probabilidade de um membro do MP distorcer os fatos na fase pré-processual não é maior que a de um delegado de polícia fazer o mesmo.


14. Possibilitar ao MP a condução direta de investigações criminais atende ao art. 37, caput, da CF, pois agrega eficiência a determinadas investigações, de acordo com a influência que o investigado possa exercer, o tipo de investigação (por exemplo, coleta e análise de documentos), a necessidade de formular um juízo direto e objetivo sobre os fatos, ou ainda por questão de ganho de tempo (por exemplo, em casos em que falta apenas uma informação para formar a opinio delicti sobre o objeto de uma representação oriunda de órgão fiscal, o MP pode obter o dado faltante expedindo um ofício ou ouvindo uma testemunha, com ganho de tempo e na formação de sua convicção).


15. A prática tem demonstrado como é relevante a atividade investigatória do MP no campo criminal, seja no combate a abusos na função policial, seja na apuração de crimes como sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, fraude contra o sistema financeiro e corrupção, sendo o famoso caso do desvio de recursos no TRT de São Paulo apenas um dos inúmeros em que se revelou fecunda a condução de investigações no âmbito interno do MP.


Notas (1) Observa-se que esta última posição olvida o fato de que mesmo aos membros do Poder Judiciário é reconhecida a possibilidade de desenvolver investigações criminais, conforme ocorre em relação aos crimes falimentares, aos crimes praticados por magistrados e até mesmo nos termos da polêmica Lei nº 9.034/95, considerada constitucional no julgamento da ADIN 1.517-DF. (2) Maior desenvolvimento do tema, com citação de doutrina e jurisprudência, pode ser encontrado no nosso “O Sistema do Promotor de Justiça Investigador Criminal e seus Falsos Problemas”, a ser publicado na Revista dos Procuradores da República. (3) O STF decidiu, em votação unânime da sua 2ª Turma, realizada em 14.10.03 (HC nº 82.865), relator o min. Nelson Jobim, que o Ministério Público pode denunciar com base em sindicância própria, instaurada para apurar a existência de ilícito penal, com base no art. 201, VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente (fonte: Informativo nº 325 do STF). (4) Tradução livre do autor. Eis a íntegra do item 82 original do citado relatório: “Public prosecutors’ offices should be strengthened. The tenure of the heads of prosecutors’ offices should be of a reasonable period, to allow sufficient opportunity to consolidate their work. Prosecutors’ offices should be provided with a team of investigators and be encouraged to make independent investigations against charges of extrajudicial executions. Legal obstacles which prevent such independent investigations should be removed through further legislation.” (5) Ver nota nº 1.


In Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.12, n.139, p. 10-11, jun. 2004.