quinta-feira, 30 de julho de 2009

A castração da República


Ministério Público levou um puxão de orelha. Aconteceu recentemente na solenidade de posse do novo Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. No seu discurso, o Presidente Lula foi incisivo: disse que o Ministério Público “tem a obrigação de agir com a máxima seriedade, não pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação, mas pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado”.
E advertiu: “... porque um dia vai aparecer alguém que acha que vocês são demais e vai mandar mudanças para o Congresso Nacional. [...] E nós sabemos que a mudança nunca será para mais liberdade, será para mais castramento”.

Em certa medida, tem razão. Nenhum agente público pode demitir-se do compromisso com a imparcialidade, a prudência e a discrição — nem mesmo o Presidente ou o Procurador-Geral da República. Ficou evidente, todavia, que não estava preocupado em realçar esta questão.
Queria mesmo é preservar as “biografias”, poupá-las de constrangimentos que poderiam advir de circunstanciais arroubos de virilidade institucional por parte de integrantes do Ministério Público. É a interpretação que mais se afeiçoa ao perfil político do Presidente depois de proclamar a intangibilidade do senador José Sarney, a despeito da repulsa pública ao seu desempenho como presidente do Senado Federal.
Preocupa. Não porque possa vergar o Ministério Público, mas porque, na tentativa de proteger “biografias”, sugerindo um tratamento especial a quem as possui, o discurso teria negligenciado as cautelas devidas àqueles que não as possuem, tal como acontece com a freguesia diária das páginas policiais — que, muitas vezes à margem do contraditório, apresenta-se ainda como caudatária da impetuosidade da mídia e do aparato repressivo estatal.

Visto de outro ângulo, o discurso do Presidente exibiu um Parlamento de reduzidas virtudes: não teria grandeza para assimilar com serenidade as críticas e censuras nutridas pela seiva da democracia; e, num ocasional acesso do sentimento corporativo, poderia fulminar, com a letalidade de seus poderes constitucionais, qualquer iniciativa aparentemente capaz de diluir ou fracionar os méritos de que se presume credor.
O recado foi no sentido de ninguém, exceto os parlamentares — e, obviamente, o Presidente — poderia brilhar, ser considerado “demais”. Se isso acontecesse, as mudanças poderiam vir — “para mais castramento”.

O desvio de perspectiva é visível. Apesar de habitualmente ignorado e, às vezes, infringido, o pacto constitucional é inderrogável: Presidente, procurador-geral da República, senadores, deputados, juizes, promotores, todos os brasileiros, enfim, carregam consigo a responsabilidade de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, livre de “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Significa que, na gestão da República, não cabe exclusão nem amesquinhamento: a responsabilidade republicana precisa ser assumida na plenitude da virilidade e do vigor ético de todos os seus órgãos, Poderes e instituições. Neste contexto, é digna de repúdio qualquer cogitação ou ideia de castração política: a República é viril — uma virilidade que só se faz fecunda se respeitados, em toda a sua dimensão, o direito e a liberdade de cada brasileiro, tenha ou não uma “biografia” capaz de merecer a preocupação presidencial.