quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Entre o cult e o oculto - crítica à empolação


Sempre dou risada com alguns textos jurídicos pretensamente cult. Já não bastam hoje as tradicionais citações em latim. Tem que ter alemão, ainda que não se saiba o porquê. Tem que ter francês e um pouquinho de inglês, pra mostrar que é cidadão do mundo. Para os mais-mais, tem que ter citação de filósofo oculto.

E dá-lhe grund, e dá-lhe gesetz, e dá-lhe buch para dizer simplesmente Lei Fundamental ou Constituição da Alemanha. Daí vem o palavrão, bonito de falar (mostra que o cara é bom mesmo), difícil de escrever (mostra que o cara é melhor ainda) e mais difícil ainda de repetir. Grundgesetzbuch, tudo junto, fica mais impressionante ainda. Até hoje não entendo porque colocar entre parêntesis o equivalente em alemão.

O legal mesmo são citações de filósofos para repetir ideias realmente simples. Todos sabemos, por exemplo, que comprar bugigangas não traz felicidade alguma. Minha avó já dizia isso, minha mãe repete e a TV também. Não precisa ser filósofo para chegar a essa conclusão. Agora, para enunciar isso de forma bonita, ininteligível e cult, precisamos de uma ajudinha dos mestres do embromation.

Imaginem o seguinte texto: Gilles Lipovetsky, e sua teoria da democratização do luxo, que tem bases lacanianas (de Lacan), afirma que a multiplexidade de objetos consumíveis não incute no sujeito a completude necessária ao porvir.

Ficou lindo, né? Mas quer dizer a mesma coisa: dinheiro não traz felicidade. Claro que de um jeito muito mais cult, universal, esteticamente nobre; europeu, eu diria. Vamos analisar o texto:

a) nota 10 para a citação de um autor pouco conhecido; melhor ainda se for estrangeiro, com nome difícil de pronunciar (Lipovetsky), porque brasileiro adora tudo o que é de fora, já que é melhor, mais limpinho, organizado e cheiroso;

b) nota 10 também para o uso da palavra "teoria", que desde logo mostra que o escritor é apegado aos estudos aprofundados das questões metafísicas, e não um simples mortal como o leitor;

c) nota 10 também para o uso conjunto de uma expressão científica (democratização) ao lado de uma mais vulgar (luxo): "democratizar o luxo" fica perfeito!

d) nota 10, com louvor, para a adjetivação de um nome próprio (lacaniano), que faz o leitor se torcer na cadeira para tentar entender qual é o contexto. Seria tão mais fácil enunciar a teoria criada pelo sujeito; mas, claro, assim ficou mais... cult!

e) nota 10, com três estrelas douradas, para a finalização, recheada de palavrório tipicamente acadêmico (uspiano - da USP - diriam alguns), que utiliza prefixo (multi) para colocar mais areia ainda nos olhos do leitor.

Média? Dez com louvor, como todas as teses de mais de 400 páginas apresentadas hoje em dia.

Entre o oculto - talvez os dicionários devessem pesquisar melhor o radical da palavra - e o direto na veia; entre o pomposo e o imediato, entre a racionalidade estética e a razão prática, fico sempre com o segundo. Os outros me entendem melhor.