domingo, 7 de fevereiro de 2010

O infarto da ciência



Vejam só o Professor Soares. Acaba de derramar a primeira lágrima ao se emocionar com os aplausos da plateia de estudantes, e no meio de assobios e gritos de viva a presidente do Centro Acadêmico entrega-lhe um buquê de flores em agradecimento. São nove horas da noite, mas parecem as duas primeiras horas de sua morte.

Antônio Amadeu da Rosa Soares, ou simplesmente Professor Soares, é ainda hoje um dos palestrantes mais requisitados no amplo campo das Ciências Sociais. Não desses que exercem um cargo na política, no esporte ou qualquer coisa que o valha e passam a ganhar dinheiro em cima da fama. Não. O Professor Soares nem mesmo dinheiro ganha em suas palestras. São todas bem recompensadas apenas com o prazer de receber as palmas, os vivas, os tapinhas no ombro quando desce do púlpito e recebe o calor dos estudantes.

Ducha tomada, no hotel, nosso preclaro (sim, ele adora adjetivos) Professor Doutor revê na agenda as andanças que ainda fará Brasil e mundo afora para agraciar estudantes com seu profundo conhecimento. Ele mesmo, que nasceu pobre no interior gaúcho e agora insuflava em animados jovens universitários a paixão socialista. Marx, Engels, Lênin, críticas aos Estados Unidos, palavrões e excelentes piadas de improviso levavam turmas e até mesmo sóbrios reitores ao delírio, ainda mais porque partiam de um sessentão barbudo que calçava sandálias de couro e tinha quatro brincos na orelha, a esquerda, claro.

Ao contrário do que muitos poderiam pensar, não estamos nos anos setenta ou no começo do Século XX; estamos no Século XXI, no salão de atos nobres da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

E apesar das palmas e das lágrimas, Antônio sabe que não as merece.

Comecemos do começo.

O Professor Soares já é decano na Universidade Federal de Santa Catarina. Estuda há quase trinta anos política, “com ênfase” em instituições socialistas. Começou cedo os estudos, logo depois de se formar em Direito. Não se deu bem na advocacia – fazer concursos nem pensar! – e resolveu tentar o mestrado na Faculdade de Ciências Sociais. Ali encontrou espaço, liberdade de pensamento, flexibilidade de horário, um salário razoável e palmas, muitas palmas. Era tudo o que precisava para viver.

Salvo um único detalhe, justamente aquele que o faz saber serem imerecidas as palmas, o Dr. Antônio Soares teve uma carreira acadêmica muito semelhante à de todos os seus colegas. Mestrado, com louvor; doutorado, com louvor; titulações, artigos, livros, teses, bancas. Firme na universidade, bolsas no exterior, pós-doutorado, convites para viagens, centenas de alunos passaram por sua avaliação.

Pois quando recebeu estas últimas palmas apresentava a palestra que na verdade era a mesma palestra já apresentada há anos: O Socialismo na América Latina a partir de Arnie Sussekind, uma autora da República Tcheca que recentemente havia morrido no Canadá, onde morara nos últimos dez anos.

O Professor Doutor vinha estudando esta autora desde seu mestrado, em especial sua teoria real-cosmopolita do socialismo. Era considerado até mesmo fora do Brasil “o maior arnieniano da América Latina”. E, de fato, era a pessoa que por mais tempo tinha estudado os livros, artigos, palestras, entrevistas e todos os comentários a respeito do trabalho da autora tcheca.

Ele particularmente não tinha criado nada de novo. As ideias que apresentava com tanta paixão eram apenas ideias alheias sobre as quais nem mesmo tinha parado para uma análise crítica. Havia desenvolvido uma forma peculiar de fazer ciência, citando autores e mais autores, sem nunca discutir com eles. Se fossem estrangeiros, e de nome complicado ou de países socialistas, pronto! A verdade estava neles.

Ah, mas que delícia de leitura eram seus textos. As citações davam um colorido especial, o ritmo, os substantivos adjetivados, tudo parecia fluir tão bem e de forma tão divertida que poucos diriam estarmos diante de um tratado de política, normalmente textos áridos e insípidos.

O fato é que depois de dez anos morando no Canadá sua musa inspiradora, sua paixão intelectual, a deusa que não chegou a conhecer pessoalmente, morrera e, dentre as cláusulas de seu testamento, estava a ordem para publicação de um livro terminado e guardado no cofre do Banco de Toronto.

Na comunidade científica a notícia não foi recebida com grande entusiasmo nem percorreu corredores de faculdades. Apenas os mais próximos e aqueles poucos que se dedicavam a pesquisar o tema se interessaram.

Para surpresa de nosso pós-doutor, Arnie Sussekind escrevera um livro autobiográfico para publicação póstuma e nele relatava as principais falhas de sua teoria, que jamais tivera coragem de publicar, mas que agora o fazia sob a seguinte epígrafe: “Para que todos os que me acompanharam possam sair comigo da escuridão para a qual os levei”.

Logo no primeiro parágrafo de seu pequeno texto vinha a confissão aterradora: “Menti por muitos anos, menti por décadas, menti minha vida inteira. Depois de minha primeira publicação – isso mesmo, logo depois da primeira – percebi ter incorrido em erros científicos absurdos, apesar de não tão evidentes. Minha principal premissa, aquela que serviu de alicerce a tudo o que intelectualmente construí ao longo dos anos, estava errada, assustadoramente errada. Mas mesmo assim eu prossegui. Prossegui e construí um castelo na areia, tudo para meu deleite pessoal, para meu gozo, para obter os louros da vitória de uma teoria que eu sempre soube ser fracassada”.

Quando leu aquilo o Professor Antônio sentiu o coração disparar e uma dor aguda logo em seguida. Seria a mesma premissa com que ele, doutor, pós-doutor, mestre, o ícone da doutrina arnieniana na América Latina havia desenvolvido e defendido com tanto vigor, tanta emoção, com lágrimas muitas vezes forjado, para impressionar a plateia?

Os primeiros sintomas de um ataque cardíaco surgiram logo em seguida, quando confirmou a dúvida. As têmporas latejavam, o abdome tremia enquanto o braço esquerdo começou a formigar, até que, no hotel cinco estrelas pago pela universidade gaúcha para recebê-lo, caiu no carpê com o livro na mão. Batiam cinco horas da tarde no relógio do saguão. Faltavam apenas duas horas para a palestra.

Sozinho no quarto do hotel, Soares, que agora é como qualquer um e dispensa pronomes e vocativos, estranhamente nem tenta alcançar o telefone para chamar por ajuda. Nenhum grito, que fatalmente seria sufocado: o ar mal consegue entrar nos pulmões. Parece resignado. Não procura por ajuda, mantém os olhos semicerrados, como quem estivesse com sono. Tenta deitar na cama, mas as pernas não respondem. Começa a suar frio, a retorcer-se, e apesar dos olhos abertos tudo ao redor começa a esbranquecer até que finalmente desmaia. O coração bate mais algumas vezes e empurra pela última vez sangue para aquela cabeça que diziam ser iluminada.

Seis e trinta e a comissão organizadora já está no saguão. Chamam seu ramal e ninguém atende. O porteiro informa não ter visto o Dr. Soares sair. Celular não atende, sem filhos, sem esposa, ninguém para dar alguma pista. Deve ter saído para tomar uma cerveja, nesse calorão, imagina a estudante de longos cabelos loiros de boina na cabeça. Que falta de responsabilidade!, dispara o barbichinha ao olhar para o relógio. Ele deve ter ido sozinho pra lá, suscita um outro. Vamos esperar mais um pouco e vamos para a faculdade.

Não, o Professor Doutor Antônio Soares não foi para a faculdade. Morreu no quarto de hotel, ao ver que morria sua respeitável honorabilidade de copiador da musa Arnie Sussekind. Morreu com seu trabalho copiado, com sua brilhante forma de dizer de forma mais fácil o que os outros já disseram. Morreu com vergonha de levar a público a sua natimorta teoria. E agora, nos sonhos, no além, no céu ou como quer que se chame o lugar em que está, ele ouve, mais uma vez, com o mesmo prazer, o mestre de cerimônias a apresentar honradamente ao público da Universidade Federal do Rio Grande do Sul o preclaro Professor Doutor Antônio Soares, titular de política socialista em Santa Catarina e o melhor intérprete de Arnie Sussekind e de sua teoria real-cosmopolita do socialismo.

* Texto inspirado nas provocações do livro Filosofia da Ciência, de Rubem Alves (p. 200), e no conto A Chinela Turca, de Machado de Assis.