quarta-feira, 28 de abril de 2010

Repeteco das provas - técnica obstusa de processo penal



Na última reforma do Código de Processo Penal resolveram colocar no art. 155 outra limitação ao princípio da livre persuasão do juiz. O coitado, agora, não pode “fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Daqui uns dias vão dizer onde ele pode ou não usar vírgula.

Não que não pudesse antes, porque essa baboseira (utilizo a mesma expressão e Frederico Marques) já é velha no direito processual penal brasileiro. Sim, neste direito processual que é um excelente instrumento para absolvição – e não para fazer justiça – a jurisprudência já proclama há tempos que não se pode condenar “só” com as provas do inquérito policial.

Mas o melhor disso tudo não é o dogma, repetido e trepetido por muitos tribunais, juízes, promotores e advogados, alguns deles seres impensantes do cenário jurídico nacional.

O melhor de tudo é descortinar o fundamento. O dogma, segundo cultos como Nucci, existe para “respeitar o contraditório e a ampla defesa”.

O que eu não entendo, entretanto, é porque uma prova colhida no inquérito e submetida à apreciação do juiz e das partes, inclusive do réu e de seu advogado, não é uma prova “submetida ao contraditório”. Se o réu e seu advogado têm a possibilidade de contrariar os testemunhos colhidos na polícia, se têm a possibilidade de requerer a reinquirição de todas as testemunhas da polícia, se podem inclusive apresentar perícia e novos documentos, se podem trazer argumentos contra ou a favor dos depoimentos da polícia, o que mais se exige para dizer que há contraditório???

Contraditório, aprendi na escola, é “conhecimento e reação”. A defesa então tem o direito de conhecer o inquérito e reagir a ele. E como reage? Reinquirindo as testemunhas que quiser reinquirir, arrolando outras, apresentando um laudo pericial para contrariar o laudo da polícia e tudo o mais que quiser. Simples, não?

Seria, se este ponto inútil da reforma e a baboseira dogmática do senso comum teórico dos juristas não estivessem há anos papagaiando que é necessária a repetição das provas. “Tudo tem que ser repetido em juízo para valer”, ouvi certa vez de uma mente impensante do direito.

“Ah, certo”, respondi. E se a vítima do homicídio, que já tinha prestado depoimento, morrer no curso do processo? Ela havia apontado o réu como o autor, deu detalhes do crime, e agora o homicida será absolvido? E a criança de quatro anos que narrou tudo na delegacia e depois da terapia conseguiu esquecer do estupro? E a perícia no sangue, o levantamento do local do crime, a filmagem, a campana? Teremos que repetir tudo isso?

É evidente que não. E se não é, a regra do processo penal evidentemente não pode ser a de que a produção da prova deve ser repetida em juízo. A regra é de que a parte tem direito ao contraditório e, para isso, não necessariamente é preciso repetir a produção da prova feita pelo Estado, na Delegacia de Polícia.

O que o Ministério Público apresenta ao juiz, junto com a denúncia, é a sua prova: o inquérito. O réu também tem que apresentar suas provas. Se o promotor quiser, para melhor convencer o juiz, pode arrolar as testemunhas para prestarem novo depoimento. O advogado também pode, se quiser inquirir a testemunha para obter um fato novo ou pegá-la em contradição.

O que não se pode é negar que os fatos foram apurados, provados e estão à disposição das partes e do juízo para apreciação. Se a prova produzida pela defesa for mais forte que a produzida no inquérito, que se absolva. Se o inquérito não for suficiente, que se absolva também. Se o inquérito sozinho convencer mais que a prova da defesa, que se condene.

Agora, exigir repeteco, como se as testemunhas não fossem sofrer coações, não fossem esquecer, não fossem... humanas, isso sim é contrário a qualquer racionalidade.

Não parei para investigar ainda as causas mais remotas desse dogma. Desconfio, contudo, que o ranço da ditadura ainda afete a confiabilidade das investigações policiais. Parece que tudo que vem das polícias, que são braço do Estado, deve ser analisado com o olhar obtuso da desconfiança. Acho que está mais do que na hora de atualizar o pensamento, está mais que na hora de levar a justiça criminal a sério.