Fui pra casa com aquilo na cabeça. Noite fria, carro congelante, vidros embaçados. Ah, que diabo de fome, esqueci de passar no mercado. Que se dane, vai ser sanduíche de novo.
Eu não devia ter respondido de primeira. Sempre que um aluno me pergunta uma coisa difícil eu acabo assim: respondo de primeira e depois me arrependo. Que péssimo professor. Vou acabar com a criatividade deles assim. Já não sou lá grandes coisa na exposição, e matando assim o interesse vou acabar num sanatório.
Desgraça, geladeira também vazia. Nem me arrisco a comer esse patê de frango (será que vai frango mesmo nisso?). E o pior, fome e remorso. Também, pudera, não é fácil dar aula sobre esses assuntos hoje em dia. Tudo está mudando. A internet tem uma novidade por hora. E eu aqui, com dificuldades de acessar a internet. Nem wi-fi tenho em casa...
Na verdade, vamos confessar. Caí da cadeira. Ou quase. Caí do púlpito, se tivesse um. Empolgado pelo excesso de café, dissertava eu brilhantemente (na minha avaliação) sobre direitos autorais. Na avaliação dos alunos: coisa antiga que ninguém mais dá bola. Sempre fui partidário da proteção aos direitos autorais. É mais que uma propriedade, ora bolas! E a mais digna delas, aquela que é gerada pelo intelecto.
No alto do meu púlpito imaginário, como se fosse um Fidel Castro discursando às massas, como se fosse um Martin Luther King com o seu “I have a dream”, eu empostava a voz (pelo menos isso eu sei fazer) para chamar a atenção de meus sonolentos alunos. Alguns nem tão sonolentos, mas estes estavam com os olhos fixos na tela do computador e eu ali, numa encenação maluca.
Lá do fundo um braço se levanta. Professor, mas se tivermos que pagar direitos autorais na internet não vai existir internet! Se a Google tiver que pagar pelas fotos, textos, arquivos e por todo o conteúdo que divulga, pior, não vai mais existir Google. E aí?
Dei a resposta padrão, automática, aquela que me retiraria o apetite mesmo se não fosse o patê passado. Direitos autorais, lei tal, artigo tal, e a constituição que assegura tudo isso. Resposta fácil, mas imbecil.
O desgraçado estava mesmo com a razão! Como podemos pensar em direitos autorais com as regras de mil e novecentos quando desde que a Google existe, e não faz nem bem dez anos, tudo mudou completamente? Já estão até chamando a atual geração de geração pós-Google!
Os direitos autorais nunca existiram mesmo para proteger o intelectual que criou a obra. Foram criados para remunerar os intermediários. O livreiro, o editor, o vendedor, o diagramador. A Google acabou com estes intermediários e agora você pode colocar o seu livro, a sua foto, o seu vídeo, tudo o que você quiser, na internet. E o Google acha. E se você pode colocar, os outros também podem. E por que diabos alguém põe algum conteúdo na internet, se não é para os outros verem? Daí porque a Google só faz o meio do caminho, e não cobra nada por isso. Mostra para quem quer ver a nova dancinha da Beyoncè onde ela está.
Se exigirmos os velhos direitos autorais, no velho estilo, no mundo moderno, babau. Acabou-se tudo! Quem é que vai financiar a Google e o que será da internet sem ela? Você viveria sem Google? Você renderia o mesmo no trabalho sem Google? Eu não!
Agora a fome está doendo mesmo. Muito café ainda vai me dar úlcera. Hoje vai ser só um copo de Nescau. Amanhã eu tomo café da manhã na padaria. Boa noite.
PS: não, eu não dou aula...