quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

(Des)cabimento dos alimentos na Lei Maria da Penha


A medida de afastamento do lar e de proibição de aproximação, definidas pela nova lei popularmente conhecida por "Maria da Penha", são instrumentos que se mostram pertinentes à dinâmica da violência doméstica, pois evitam que o agente insista na conduta delitiva. No entanto, a solicitação de alimentos provisionais ou provisórios, apesar de prevista na polêmica lei "Maria da Penha", nos parece incabível.

Inicialmente, percebe-se que o art. 5º, inciso LIII, da Constituição Federal, preceitua que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (grifo nosso). A este propósito, Alexandre de Moraes ensina que "o referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se, não só a criação de tribunais de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão julgador" (grifo nosso). [01]

Mais. Ao tratar sobre a diversidade de competências jurisdicionais, Tourinho Filho sustenta que "a distinção que se faz entre jurisdição penal e jurisdição civil assenta, única e exclusivamente, na divisão de trabalho. Determinados órgãos jurisdicionais são incumbidos de dirimir conflitos intersubjetivos de natureza civil, enquanto outros se encarregam de equacionar os de natureza penal". [02] Tal divisão acaba proporcionando um melhor enquadramento entre o perfil do Magistrado e a competência desempenhada, assim como gera benéfica especialização prático-teórica do Juiz na matéria apreciada, proporcionando maior confiabilidade na prestação jurisdicional.

Assim, a intervenção de um Juízo criminal em questão cível cria não somente descabida sobrecarga para aquele Juiz (visto que a questão provavelmente será toda reavaliada no contexto de eventual separação judicial, no Juízo cível), mas proporciona, principalmente, insegurança jurídica para os jurisdicionados, dado o provável descompasso entre as decisões de juízos diversos.

De fato, a possibilidade de o Juízo criminal decidir sobre matéria de natureza eminentemente cível – criada pela nova lei – nos parece burla aos princípios do juiz natural e da competência, razão pela qual deve ser rechaçada por inconstitucional e ilegal. [03]

Mas não é só. A fragilidade – ou até mesmo completa ausência – do conjunto probatório trazido em sede de "pedido de medida protetiva" de fixação de alimentos é por demais temeroso para a constituição de um ônus dessa magnitude, visto principalmente o caráter irrepetível das prestações alimentares, máxime em regiões onde a renda média per capita é muito pequena. Tal fragilidade desembocaria, mais uma vez, no conflito de decisões, acaso o pedido fosse concedido em sede de Juízo criminal.

Uma solução tecnicamente viável para o problema seria a aplicação analógica do art. 74, § 2º, do Código de Processo Penal, onde o Juiz criminal receberia o pedido de medidas protetivas de urgência, decidiria sobre as demais questões, e enviaria a fixação dos alimentos para o juiz competente: o cível. Tal medida atenderia, a um só tempo, à economia e celeridade processuais, pretensamente pretendidas pela nova disposição legal sob análise, visto que, num só petitório, demandas de natureza criminal e cível seriam atendidas; no entanto, por Juízos diferentes.

Isto não significa dizer que a vítima de violência doméstica que pleiteia "medida protetiva de urgência" na modalidade "alimentos provisórios ou provisionais" não será assistida pelo Poder Judiciário, mas tão-somente que o pedido deve ser decidido pelo juiz competente. Inclusive, o rito processual dedicado à fixação de obrigação alimentar prevê pronta resposta do Judiciário àquele(a) que assim o pugnar.

Percebe-se que a lei "Maria da Penha" é mais um dispositivo legal tecnicamente mal elaborado, incidindo em vício de natureza constitucional e legal quando prevê a fixação de alimentos por juiz criminal, devendo por isso ser afastada sua aplicação em sede de controle de constitucionalidade difuso.

Texto de Felício Soares, Promotor de Justiça do Tocantins.

[1] Direito Constitucional, 22ª ed. 2007. Editora Atlas. pg. 82.
[2] Processo penal – vol. 1. 23ª ed. 2001. Saraiva. pg. 19.
[3] As competências civil e criminal são respectivamente definidas no art. 1º e 86 e seguintes, do Código de Processo Civil, e art. 1º e 69 e seguintes, do Código de Processo Penal.