domingo, 3 de maio de 2009

Comentários à lei do sequestro relâmpago


Por força da Lei 11.923/2009, o chamado sequestro relâmpago, no nosso ordenamento jurídico-penal, passou a ser tipificado no art. 158, § 3º, do CP, nestes termos: "§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente."

Clareza do legislador


Sempre foi tema muito confuso o correto enquadramento do delito de sequestro relâmpago. A nova lei tem a virtude de esclarecer a tipificação adequada. Já não existe nenhuma dúvida: agora o sequestro relâmpago está previsto expressamente no art. 158, § 3º, do CP.


Duas situações diferentes: para clarificar bem a matéria, devemos fazer a seguinte distinção: uma coisa é a concretização exclusiva do sequestro relâmpago (obrigar a vítima, por exemplo, a fazer saques em caixas eletrônicos, privando-a da liberdade) e outra (bem diferente) consiste em o agente subtrair bens da vítima em primeiro lugar (o carro, a carteira, dinheiro etc.) e depois praticar o sequestro relâmpago. Na primeira situação temos crime único (agora enquadrado no art. 158, § 3º, do CP, sem sombra de dúvida). Na segunda temos dois delitos: roubo (art. 157) + art. 158, § 3º (extorsão).


O sequestro relâmpago era enquadrado como extorsão mediante sequestro


No que diz respeito ao crime único de sequestro relâmpago (agora previsto expressamente no art. 158, § 3º, do CP) cabe fazer as seguintes considerações: antes do advento da Lei 11.923/2009 ele era tipificado ora no art. 157, § 2º, V, do CP, ora no art. 159 do CP (extorsão mediante sequestro).


Correta era a última posição porque no sequestro relâmpago é imprescindível a atuação da vítima para que o delito se consuma, ou seja, a atuação da vítima é condição necessária para a obtenção da vantagem econômica. Isso não se passa no roubo (onde o agente subtrai os bens da vítima, sem que ela seja condição necessária para a obtenção da lesão patrimonial).


A pena do delito foi reduzida


Partindo-se da premissa posta, a pena do delito de sequestro relâmpago, antes, era de oito a quinze anos de reclusão (CP, art. 159). Agora (por força da nova lei) a pena é de seis a doze anos (crime simples). A nova lei diminuiu a pena do delito em destaque.


Sequestro relâmpago deixou de ser crime hediondo


Antes o sequestro relâmpago (sendo enquadrado no art. 159) era crime hediondo. Agora deixou de ser crime hediondo (porque a extorsão do art. 158, § 3º, não está catalogada, no Brasil, como crime hediondo - ver art. da Lei 8.072/1990). Não sendo possível analogia contra o réu, não pode o juiz suprir esse vácuo legislativo (nem o doutrinador pode violar a garantia dalex stricta).


Lei nova é mais benéfica ao réu


Antes não se permitia para o sequestro relâmpago a anistia, graça, indulto etc. Agora todos esses institutos são cabíveis. Antes se exigia o cumprimento de dois quintos (se primário) ou três quintos (se reincidente) para a progressão de regime; agora basta o cumprimento de um sexto da pena para esse efeito (LEP, art. 112).


E retroativa


E como se vê, a chamada lei "de repressão dura" contra o sequestro relâmpago, na verdade, se comparada com a classificação correta anterior (que o inseria no art. 159 do CP), é muito mais favorável ao réu. Nos pontos favoráveis, claro, a lei nova vai retroagir (para beneficar o réu), caso ele tenha sido condenado pelo art. 159.


Sequestro relâmpago com lesão grave ou morte:se resulta (do sequestro relâmpago) lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente.


Note-se: o crime não se converte em extorsão mediante sequestro, tão-somente são aplicadas as suas penas (só é extorsão mediante sequestro quo poenam). Não sendo extorsão mediante sequestro, em regra não há que se falar em crime hediondo, salvo quando ocorre o resultado morte (extorsão com resultado morte é crime hediondo). No caso de lesão grave, não é crime hediondo (por falta de previsão legal).


Desproporcionalidade da pena


A pena nova do delito de sequestro relâmpago (embora menor que a anterior, contemplada no art. 159 do CP), comparada com o delito de homicídio simples, é totalmente desproporcional. Aliás, a pena é idêntica nas duas situações: de seis a doze anos de reclusão. Praticar sequestro relâmpago ou matar uma pessoa no Brasil é a mesma coisa (no que diz respeito à pena). A desproporcionalidade é patente. Sendo o Brasil um país tradicionalmente patrimonialista, nota-se o quanto que o patrimônio "vale" (na consideração equivocada do legislador) mais que a vida.


Desproporcionalidade entre o roubo e o sequestro relâmpago


Há desproporcionalidade também em relação ao roubo com privação da liberdade da vítima. Nesse caso (roubo agravado) a pena mínima é de cinco anos e quatro meses de reclusão. No sequestro relâmpago a pena mínima é de seis anos de reclusão. Total desproporcionalidade. Tanto no roubo como no sequestro relâmpago o objetivo do agente é o patrimônio. Bens jurídicos idênticos, modo de execução idêntico: não se justifica pena distinta. Cabe ao juiz julgar inconstitucional a pena do art. 158, § 3º, do CP, aplicando a pena mínima do art. 157, § 2º, V, do CP.


Roubo + sequestro relâmpago (concurso de crimes)


Se o agente rouba a vítima (rouba o carro, uma carteira, dinheiro, relógio etc.) e, em seguida, no mesmo contexto fático (sem nenhuma interrupção temporal), pratica também o sequestro relâmpago (saques em caixas eletrônicos), temos dois delitos: roubo + art. 158, § 3º. O roubo pode ser simples ou agravado (pelo concurso de pessoas, por exemplo).


Concurso de crimes material ou formal?


A clássica jurisprudência do STF sempre enfocou o tema (roubo + extorsão) como concurso material de crimes (RE 104.063-SP, 2ª Turma, rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 17?05?85). No mesmo sentido: HC 74.528-SP, 2ª Turma, rel. Min. MAURÍCIO CORREA, DJ de 13?12?96); HC 69.810-SC, 1ª Turma, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 18?06?93); RESP 684423-SP, 5ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 14?02?2005). Esse é o clássico entendimento jurisprudencial (provavelmente, embora incorreto, é o que vai prevalecer doravante).


O tema é polêmico porque o contexto fático é único. Melhor seria dizer que se trata de conduta única, com dois resultados (com dupla ofensa ao bem jurídico patrimonial). Isso configuraria concurso formal de crimes. Próprio ou impróprio? A mais conservadora doutrina diria impróprio, em razão dos desígnios autônomos. Ocorre que as razões de política criminal que estão por detrás do concurso formal (evitar o exagero de penas) nos conduz a sustentar o seguinte: o concurso formal impróprio somente deve ter pertinência quando se trata de bens jurídicos muito relevantes (vida, por exemplo). Tratando-se do patrimônio, não haveria espaço para o concurso formal impróprio. Seria então sustentável a tese do concurso formal próprio no caso de roubo + sequestro relâmpago (tal como boa parte da jurisprudência faz com o roubo em ônibus, contra várias vítimas, v.g.).


Roubo agravado pela privação da liberdade da vítima + sequestro relâmpago:


Isso é possível. Vamos imaginar: o agente, durante o roubo em sua casa, priva a vítima da liberdade para a consumação do roubo (tranca a vítima no banheiro, v.g.). Em seguida coloca a vítima no carro e vem a pratica o sequestro relâmpago. O que temos? Roubo agravado (art. 157, § 2º, V) + sequestro relâmpago (art. 158, § 3º). São duas privações da liberdade diferentes (para finalidades distintas). Daí a pertinência do roubo agravado pela privação da liberdade + sequestro relâmpago.


A privação da liberdade no roubo, no sequestro relâmpago e na extorsão mediante sequestro (diferenças)


Com a nova lei percebe-se que a privação da liberdade pode servir como meio para a prática de três crimes patrimoniais: roubo (art. 157, § 2º, V), extorsão comum (art. 158, § 3º) e extorsão mediante seqüestro (art. 159).


Distinções


Haverá roubo quando o agente, apesar de prescindir (não necessitar) da colaboração da vítima para apoderar-se da coisa visada, restringe sua liberdade de locomoção para garantir o sucesso da empreitada (da subtração ou da fuga). Ocorre extorsão comum (seqüestro relâmpago) quando o agente, dependendo da colaboração da vítima para alcançar a vantagem econômica visada, priva o ofendido da sua liberdade de locomoção pelo tempo necessário até que o locupletamento se concretize. Por fim, teremos extorsão mediante sequestro quando o agente, privando a vítima do seu direito de deambulação, condiciona sua liberdade ao pagamento de resgate a ser efetivado por terceira pessoa (ligada, direta ou indiretamente, à vítima).


Autores: Luiz Flávio Gomes Rogério Sanches Cunha