sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Poder ou Poeta?


Cena um. Toca o telefone. Casa do interior. Correria para ver quem chega primeiro. O avô, do lado do telefone, assistindo televisão, é o mais rápido. Atende... Alô, aqui é da empresa quebretruseguros (ininteligível), estamos oferecendo ao senhor um benefício de renda garantida, fala a atendente de telemarketing na velocidade da luz. Como?, pergunta o agricultor aposentado. Isso mesmo, é uma excelente vantagem para o senhor e toda a sua família, o senhor tem filhos? Sim. Ótimo, neste caso vou passar o senhor para o setor competente para poder confirmar a sua opção de adesão.

Cena dois. Dois meses depois, dezoito reais a mais na conta telefônica. Que diabo é isso, mulher? Não sei, liga lá. Liga, ninguém atende. Liga, atendem, cai a linha. Liga, atendem, musiquinha. Liga de novo, atendem, musiquinha, mocinha atende, pois não senhor, em que posso estar lhe ajudando?, Ah, eu só gostaria de saber o que é isso na minha conta, Pois não senhor, vou estar verificando... mais musiquinha... mais... Senhor, o senhor contratou o seguro renda premiada..., Eu não contratei nada..., Temos aqui o registro no sistema sim senhor, obrigado pela ligação e tenha um bom dia, Bom dia o car....

Cena três. Seu moço, aqui é o Procon? Sim. É que eu tenho isso aqui na minha conta de telefone, Ah, o golpe do seguro, O promotor já entrou com a ação e o juiz mandou pararem de cobrar, multa de dez mil por dia, Não é que a justiça funciona mesmo, que bom, obrigado!

Cena quatro, a última, eu juro. Moço, aqui é o Procon? Sim. Continua aquela cobrança na minha conta, o juiz não tinha mandado parar? Pois é, mandou mas a empresa não obedeceu, Como assim, não obedeceu, Não obedeceu, o juiz mandou aplicar uma multa grossa mas o tribunal disse que era melhor a prisão por desobediência. Sério, então vão presos? Pois é, o problema é que não tem como prender uma empresa e os diretores moram nos EUA. E agora? Agora não sei, agora acho que acabou, melhor pagar a conta.

O art. 461 do Código de Processo Civil autoriza o juiz a utilizar todos os meios necessários para tornar efetiva sua decisão judicial. Neste caso, o juiz, diante do descumprimento de uma liminar que mandava suspender a cobrança de seguros não contratados, mandou bloquear a conta da empresa e seqüestrou o dinheiro até que cumprissem. Não cumpriram e, pior, recorreram. Ai... como tenho medo do agravo de instrumento. Os relatores nunca ouvem a parte contrária, dão pouco crédito para o juiz e ainda se arvoram em sentenciar. No caso o TJ disse que não podia seqüestrar o dinheiro, só depois do trânsito em julgado (que deve levar uns dez anos). Podia sim, disse o doutor, mandar prender por desobediência. E prende quem? Crime de desobediência? Vale uma transação penal? Cesta básica ou prestação de serviços à comunidade? Nenhum dos dois, vamos esperar a prescrição.

Por essas e outras a impressão que tenho é de estarmos diante de um Judiciário que é cada vez menos “Poder” e cada vez mais Poeta. Declama bonito, declara com precisão, lindos parágrafos e belas sentenças. Na prática, pouco, muito pouco. Garotos bem pagos para passar a sensação de que está tudo funcionando bem, disse meu amigo dia desses depois de uns goles de vinho. Parece que sim.

Leia abaixo o pedido de bloqueio on-line (nomes reais substituídos):

Com fundamento nos mesmos arts. 461, §5º, do Código de Processo Civil, e do art. 84, §5º, do Código de Defesa do Consumidor, e pautado no entendimento doutrinário (Marinoni e Arenhart) de que “é possível, também, efetuar o bloqueio de verbas, até que o requerido cumpra certa determinação judicial” , o Ministério Público requer o bloqueio de ativos financeiros da requerida no valor total da multa já aplicada, conforme tabela que seguirá abaixo.

A providência deve ser assim adotada, nestes autos e imediatamente – e não relegada a um momento executivo posterior – porque a própria ré já demonstrou que não tem medo da execução civil. Sabe que o procedimento é lento, burocrático e que, até lá, poderá utilizar-se de inúmeros recursos, embargos e outros expedientes para impedir o trânsito em julgado da decisão. Note-se que inclusive já manejou recurso (embargos de declaração com efeito infringente) contra a decisão liminar do agravo de instrumento, embora, como se sabe, tais decisões atualmente não estejam mais sujeitas a recurso.

Assim, aguardar para conferir força mandamental efetiva (não apenas retórica) à liminar deferida nestes autos somente numa possível, futuríssima e incerta execução civil, aguardar tanto tempo equivale a simplesmente negar efeitos práticos à liminar. Equivale a parabenizar o magistrado pela bela decisão, mas rir-se no íntimo de sua luta quixotesca contra os moinhos de vento das relações de consumo brasileiras.

Pois bem, considerando que a requerida Brasil Telecom S.A. foi intimada da decisão em 18 de fevereiro de 2009 e até o momento não cumpriu as ordens deferidas na liminar, que tinham, respectivamente, o prazo imediato (“B”), e de trinta dias (“C” e “D”), tem-se o seguinte quadro:

Item liminar Consumidor Data inicial Data final Multa diária Multa total

“B” João da Silva 18.2.2009 21.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 640.000,00
“B” João da Silva 18.2.2009 21.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 640.000,00
“B” João da Silva 18.2.2009 01.04.2009 R$ 10.000,00 R$ 440.000,00
“B” João da Silva 18.2.2009 01.04.2009 R$ 10.000,00 R$ 440.000,00
“B” João da Silva 18.2.2009 21.3.2009 R$ 10.000,00 R$ 340.000,00
“B” João da Silva 18.2.2009 21.3.2009 R$ 10.000,00 R$ 340.000,00
Subtotal R$ 2.840.000,00
“C” João da Silva 18.3.2009 21.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 330.000,00
João da Silva 18.3.2009 21.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 330.000,00
João da Silva 18.3.2009 01.04.2009 R$ 10.000,00 R$ 130.000,00
João da Silva 18.3.2009 01.04.2009 R$ 10.000,00 R$ 130.000,00
João da Silva 18.3.2009 21.3.2009 R$ 10.000,00 R$ 30.000,00
João da Silva 18.3.2009 21.3.2009 R$ 10.000,00 R$ 30.000,00
Subtotal R$ 980.000,00
“D” João da Silva 1.3.2009 28.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 570.000,00
“D” João da Silva 1.3.2009 28.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 570.000,00
“D” João da Silva 1.3.2009 9.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 380.000,00
“D” João da Silva 1.3.2009 9.4.2009 R$ 10.000,00 R$ 380.000,00
“D” João da Silva 1.3.2009 30.3.2009 R$ 10.000,00 R$ 290.000,00
“D” João da Silva 1.3.2009 30.3.2009 R$ 10.000,00 R$ 290.000,00
Subtotal R$ 2.480.000,00
Total R$ 6.300.000,00

Veja-se que o bloqueio da multa acima calculada (R$ 6.300.000,00), além de ser ínfimo diante do poder econômico da requerida Brasil Telecom S.A., empresa que em 2007 apurou lucro líquido de R$ 617 milhões, 42% superior ao ano anterior , é abalizado pela jurisprudência inclusive quando se trate de verbas públicas, bens teoricamente impenhoráveis:

O bloqueio da conta bancária da Fazenda Pública possui características semelhantes ao seqüestro e encontra respaldo no art. 461, § 5º, do CPC, pois trata-se não de norma taxativa, mas exemplificativa, autorizando o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a determinar as medidas assecuratórias para o cumprimento da tutela específica. Precedentes da Primeira Seção .

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO. MEDIDAS EXECUTIVAS. BLOQUEIO DE VALORES DE VERBAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE (ART. 461, § 5º, DO CPC). MEDIDA EXCEPCIONAL. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO.
1. O entendimento pacífico desta Corte Superior é no sentido de que é possível ao juiz - ex officio ou a requerimento da parte -, em casos que envolvam o fornecimento de medicamentos a portador de doença grave, determinar medidas executivas para a efetivação da tutela, inclusive a imposição do bloqueio de verbas públicas, ainda que em caráter excepcional.
2. Nesse sentido, os seguintes precedentes: EREsp 770.969/RS, 1ª Seção, Rel. Min. José Delgado, DJ de 21.8.2006, p. 224; EREsp 787.101/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 14.8.2006, p. 258; REsp 851.760/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 11.9.2006, p. 238; REsp 815.277/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 2.8.2006, p. 261; REsp 824.164/RS, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 28.6.2006, p. 253; AgRg no Ag 749.477/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 1º.6.2006, p. 162; REsp 796.509/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins .

Vale salientar que o valor apontado não é de modo algum exorbitante. Nestes primeiros dias do mês de maio o Procon já conseguiu identificar seis consumidores lesados, para os quais a liminar não foi cumprida. Num universo de aproximadamente trinta mil habitantes, certamente o número de consumidores lesados é muitíssimo maior.